quarta-feira, 6 de maio de 2009

Sorriso Pintado

Ela viu-se refletida no espelho. Não podia sorrir.
Uma lagrima escorreu pelo seu rosto. A sensação de vazio e desgosto tomou conta de seu corpo ao deixar um sabor amargo na sua boca, o desprezo. Não suportava aquilo que o espelho lhe mostrava. Aquilo que havia mostrado por toda a sua insignificante vida. Sua incapacidade de ser amada.
Com seus olhos de purgatório revelou a teia de mentiras que produzira, escondendo a monotonia da sua fraqueza, de sua obsessão por não existir. Fechou os olhos em demasia, o gosto de vomito subiu por sua boca, mas nunca chegou a cuspir tudo que a envenenava por dentro. Virou-se de costas e sorriu. Uma felicidade Falsa.
O antagonismo de seus sentimentos não queria deixar aquele quarto, o esconderijo, entretanto não desejava afogar-se na prisão da segurança. Afinal, seria violentada com perguntas que não tinham respostas por seus pais. Suspirou e saiu. A culpa corroia seus sentidos, os embriagando com o ódio, o simples ódio, um ódio soldado em sua alma, por quem havia lhe atirado ao mundo, simplesmente por ter tê-la feito viver.
Riu ironicamente do seu egoísmo.
Encontrou-se com todos que era obrigada a ver todos os dias no mesmo local, simplesmente por convenção cartesiana de organizar a vida de pessoas em classificações e etapas. E com seu cinismo perfeito discutia como o mundo era egoísta. Hipócrita! Ainda assim, todos eles lhe admiravam e a conduziam com respeito. Grande Sofisma.
Ela sabia talvez muito mais que qualquer um ou menos que ninguém, que existiam pinturas belas sobre as pessoas. Artistas de um único palco. Ela não era desse jeito?
Só que ainda era uma garotinha. Ansiava por atenção e carinho. Não havia. Ansiava por proteção. Não havia. Ansiava por um brinquedo. Não havia. Ansiava conhecer tudo. Não podia. E mais do que tudo desejava ser mulher. E nunca conseguiria.
O muro que colocou em torno de si mesma a protegia das invasões, qualquer que fossem, dos outros de rosto pintado. A solidão em suas relações era permeada pela futilidade e uma competição que fingia participar. Uma disputa para ver quem era mais perfeito no meio de tantos imperfeitos.
No entanto, já tentara abrir-se para alguém, talvez para muitos, talvez para ninguém. Quando olhos como espadas a cercavam e a julgavam com indolência, o primeiro que mudava a pintura para uma gentileza afagava-lhe os sentidos, mesmo por um instante. Embriagava-se como uma droga por esses míseros momentos e carregava isso na memória, mesmo sabendo como isso só a tornava mais criança.
Algumas vezes tentou abrir as fechaduras de si para esses seres mais amáveis. Nunca conseguiu. No ultimo instante fechava-se novamente com medo das mazelas de seu coração poderiam corromper as pessoas gentis. Não, era mais uma mentira, só não queria perceber a verdade inevitável, nunca seria amada.
E sentada em um lugar que ninguém nunca lhe acharia percebeu o que no fundo já sabia. O infortúnio estava em si.
Quem não conseguia se amar era ela. Cada pedaço do seu corpo ansiava por uma aprovação dela e para isso precisava da aprovação de todos. Era um ciclo vicioso. A pessoa que havia tornado-se era conseqüência de suas escolhas e a solidão era consigo. Não suportava coexistir com o mundo. Entretanto, o infame era a culpa ainda maior que se alastrou no oceano da alma, na praia do seu estomago.
Tentou limpar as lagrimas e controlar o choro. Estava histérica, mas ninguém podia ouvi-la. Respirou fundo. Precisava de algo para sentir-se vida. Algo para que conseguisse suportar o delito de ser quem era.
Levantou-se, correu, fugiu.
E com a droga da sua ansiedade colocou-se em uma situação inusitada, mas que por um instante a fez sentir-se viva. Encontrou um homem, nem sabia o seu nome. Ele possuía uma aparência agradável e petulante. Pintou um sorriso em sua face e deixou-se levar pela ignorância da sedução. Uma ignorância enjoativa.
Pela primeira vez seu corpo foi explorado por outra pessoa. Um ninguém ou aquele que a salvaria da culpa de odiar-se. A garota olhou para o teto, ele era todo branco e tinha algumas teias de aranha. Sentia um nojo misturado com um calor, mas não tinha muita vontade de fazer qualquer coisa, apenas foi subserviente. Como a maioria. E como uma vadia, levava-se ao desespero da coerção física para se auto-afirmar.
E no meio de tudo aquilo sorriu, a aranha estava andando pela teia.
Quando chegou a seu quarto, seu esconderijo desmoronou. Sentia-se viva e porca. Caiu de joelhos no chão e chorou lagrimas vermelhas, como o sangue que haviam ficado naqueles lençóis. Era vadia e era mulher. Sabia que suas atitudes eram destrutivas, mas isso lhe trazia um sabor delicioso à boca.
Ela se arrependeria? Talvez. Talvez já estivesse. Não tinha certeza. Finalizara a chance de ser amada, estava suja. Em certo ponto aquilo lhe trouxe liberdade, não precisava mais se afirmar na sociedade. Não precisava ser uma mulher decente, apenas mulher.
Enquanto as lagrimas caiam pelo chão sentiu a garotinha deixar-lhe. A dor era quase insuportável. Naquele momento descobriu que a amava, a pura garota que era tão gentil que não desejava prejudicar ninguém, pelo contrario amava a todos. Ela era linda e só precisava que lhe dessem uma chance. Só que a mulher não era gentil o bastante para ceder aos encantos de uma pessoa tão pequena e frágil.
Secou a ultima lagrima e jurou nunca mais chorar. Guardaria a memória daquela que fora um dia e aproveitaria para ser quem era agora. Alguém que tinha a permissão de mentir e pintar-se. Alguém que tinha certeza que não seria amada, mas que não por ser quem era. Sentiu-se realizada, havia expirado seus crimes com um fantoche que havia os carregado.
Ela tinha permissão de amar, mesmo sem ser amada. Talvez isso fosse ser mulher.
Ela viu-se refletida no espelho. Já podia sorrir.


Catch the weel that breaks the butterfly. (Falling Down - Oasis)

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