domingo, 26 de abril de 2009

Vislumbro da eternidade

Quando o suspiro da morte passa por nosso corpo, já começamos a sentir o peso das pálpebras se fecharem a caminho do sono eterno. Ao contrário do senso comum, o que perpassa por nossa mente é uma sensação de descanso e liberdade. Uma sensação feliz da aproximação do nada, do cinza eterno.
Sempre soube que minha morte seria uma morte prazerosa. Afinal sempre a desejara. Desde os meus dezessete anos e essa de vontade não mudou um único dia mesmo depois de sete séculos. Por isso, sentindo os últimos instantes da minha vida e a energia do meu corpo juntando-se a natureza para completá-la, eu conseguia sorrir, ou melhor, queria sorrir.
Estava sentada no meio do jardim da minha humilde casa, pequena e aconchegante, onde havia criado todos os meus filhos, netos e até o marido, onde minha mãe havia me criado e criados meus filho e assim por diante; o banco de madeira no meio dos girassóis sempre fora meu lugar favorito naquela casa. Minha memória mais preciosa estava aqui. Então, nos meus dezessete anos já havia decidido que era aqui que eu iria morrer. Então sorri.
Escutei o soluço, com esforço dos meus noventa e sete anos virei para enxergar minha netinha, minha querida criança soluçando perante a minha partida e com esforço toquei na ponta dos seus dedos pregados com força no banco em que sentara.
- Querida, não chore. – falei com toda minha força, tentando-lhe passar confiança.
-Mas vovó... - ela soluçou. - A senhora está partindo, o que eu irei---
Eu a interrompi. –Escute querida. - pausei e respirei para continuar, sentia minha vista cada vez mais escura. – Entendo o que está sentindo, mas vovó está muito feliz agora, o sonho dela está realizando.
-Eu não entendo isso!- ela sibilou com raiva. –Como você pode estar feliz em morrer? Em abandonar sua família? Em me abandonar?
Vi minha garotinha encostar a cabeça nos joelhos e soluçar ainda mais alto. Como eu amava aquela garota. De todos, com certeza seria quem eu mais sentiria falta. Entretanto, no fundo do meu coração sabia que ela me entendia, que ela era como eu. Então toquei seu ombro, mesmo com a dor do cansaço físico me corroendo. Então falei:
-Minha menina, quando tinha sua idade, eu perdi a pessoa mais importante para mim. -ela me olhou confusa. –Sim, eu perdi meu primeiro e único amor, neste mesmo lugar.
-Vovó, você nunca me disse...
Eu sorri. – Querida, essa é uma história tão enraizada, a qual é difícil até de pensar sobre ela. – tossi um pouco e voltei a falar. –E por mais estranho que pareço, nunca deixei de pensar nela, nem sequer um dia.
Naquele mesmo banco, eu conheci a pessoa que havia me salvado de todas as dores de uma juventude solitária e incompreendida. Talvez algo comum a qualquer jovem, porém, quando sentimos um amor tão ardente e profundo quanto o que senti, ficamos com marcas para toda a vida.
Ele havia sido tudo: amigo, amante, companheiro, aspirante, louco, inimigo, rival. Tudo. Uma mistura de sentimentos conflitantes culminando em um desejo louco de permanecer em um silêncio mútuo infinito. Era um laço apenas nosso e nesse banco havíamos nos conhecido ao meio dia em um dia de sol e nesse mesmo lugar, em um meio dia dissemos adeus.
Quando o conheci já sabia que o fim já estava determinado. Ele era doente. Entretanto, quando estamos sós não temos o luxo de escolher quem iremos gostar, pois o desespero de estar sozinho é maior em relação à covardia do sofrimento posterior. Mais tinha algo mais, era impossível não ter. Pelo menos para mim, a carregadora de uma promessa por toda uma existência.
-Antes de conhecer seu avô, antes da loucura da minha mãe, eu aprendi o que era amar intensamente e isso nunca morreu. – sorri para ela. –No entanto, querida... Perdi essa pessoa neste mesmo lugar e a única coisa que pude fazer foi segurar a sua mão e esperar o fim.
Ela soluçou. – Mas vó...
-Antes de ele morrer, fizemos uma promessa. - suspirei – Que eu morreria para encontrar com ele.
-Então porque não se matou?!-ela perguntou com raiva.
-Ele pediu para eu viver a vida que ele não tinha vivido e me disse algo mais: “as pessoas nunca morrem de verdade, se os vivos jamais se esquecerem delas, eles esperarão pela eternidade”.
Uma lágrima escorreu pelo meu rosto sobre as rugas da idade. Lembrava de sua feição antes da morte. O vislumbre da eternidade pregado em seus olhos e o calor se esvaindo de seu corpo, além do nosso amor juntando-se aos objetos e perdendo o vínculo de nossos corpos. Lembro com havia doído, entretanto nenhuma dor me fez perder a confiança de vê-lo.
E nesse momento de reminiscências, pude sentir minha vista ficar escura e com a última força segurei a mão da minha menina. Senti a voz dela me chamando em desespero, mas o som cada vez ficava mais longínquo. O calor da vida se despedia do meu corpo, só que outro calor estranhamente forte invadia: o da morte. E o sentimento de renascer começava em mim. Era tudo cinzas.
E em um ultimo suspiro falei:
-Não se esqueça dos mortos, pois eles vivem na eternidade.
E mergulhei na escuridão.
Era como se estivesse sem respirar debaixo de um oceano quente, pegando fogo. Estava inerte, lavada pela correnteza de calor, pela escuridão cegante. Havia um alivio. Porém, alguns minutos depois, ou horas, ou dias, senti uma energia e uma vontade, então abri os olhos.
Pude enxergar com clareza, me sentia nova e revigorada. Estava sentada e olhei para minhas mãos onde me apoiava, não estavam enrugadas, estavam novas. Com um susto, toquei meu rosto, estava novo e peguei nos meus cabelos, compridos, escuros e sedosos. Parecia ter dezessete de novo.
Então levantei e olhei para trás. Vislumbrei a eternidade, o amor e minha felicidade novamente.



O que mantém dois humanos juntos é o fato deles acreditarem um no outro. (Nana - Ai Yazawa)

Um comentário:

  1. Ah, eu só consegui lembrar da cena da dona Kyoko reencontrando o pai da Tohru ;___;~

    Texto muito bem escrito, como já disse antes!
    (L)

    Aru

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